segunda-feira, 20 de outubro de 2025

CRÔNICA | Uma (quase) vitrine humana

Esses dias, assisti ao filme “Amores materialistas”, disponível na plataforma HBO Max. Nada exagerado em termos de interpretação, produção, etc. Nele, uma mulher de 30 e poucos anos trabalha numa agência casamenteira, arranjando relacionamentos com base em características comuns, quando encontra um cara rico de 50 anos que chama sua atenção e, no mesmo dia, reencontra um ex-namorado pobre de 30 e poucos anos como ela. A película fez-me pensar sobre o tema da oferta de pessoas/corpos/comportamentos.

Quem entra num aplicativo de relacionamentos sente que está num supermercado, mas sem carrinho, só com o dedo. Arrasta para a direita, arrasta para a esquerda. Há gente linda, polida, filtrada. Há rótulos bem feitos: espontâneo, fitness, viajante. É um catálogo de sonhos embalados, ou seja, o amor virou vitrine, e cada um tenta se vender como pode.

Uns colocam no perfil o carro, o corpo, o destino da última viagem. Outros preferem vender a alma, num discurso um tanto poético, porém sempre com uma boa iluminação. O importante é ser desejável, ninguém quer parecer fora de linha.

As conversas começam como negociações: “O que você procura?”; “O que você oferece?”. Amor virou transação comercial, sentimento com prazo de validade e política de devolução. Se não serve, devolve. Se enjoa, troca.

Vivemos a era dos amores materialistas (como o título do filme), e não falo de dinheiro, mas sim de superfície. Valorizamos mais o brilho do que tudo. Mais a aparência do que o encontro.

As pessoas viraram produtos com embalagens emocionais. E o mais curioso é que ninguém se rebela, todos participam da feira, tentando parecer mais caros, mais raros, mais clicáveis.

No fundo, as pessoas ainda querem o mesmo: ser vistas, ser escolhidas, ser amadas. Só esquecem que o amor não cabe em vitrine, eis que, diferentemente do consumo, ele não melhora quando tem muitos “likes”.

O filme chama atenção para isso, quando as/os clientes da personagem principal fazem mil e uma exigências sobre como querem que as pessoas sejam, as pessoas que serão apresentadas a elas. E é tudo pago. Quando um casal apresentado pela agência finalmente casa, há festinha na empresa.

Enquanto isso, a humanidade segue rolando a tela, procurando alguém que pareça original, sem perceber que todos nós já estamos com o código de barras colado na pele.

Ah, e quanto ao dilema da personagem (“tiozão” rico ou ex-namorado jovem pobre), você terá que assistir ao filme para saber o que ocorre. Aliás, se fosse você na situação dela, o que faria?

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

CRÔNICA | Língua portuguesa: o drama das palavras

Escrever bem, dizem, é um dom. Bobagem! Escrever bem é um ato de paciência e, talvez, de resistência. Em um mundo em que tudo precisa caber em duzentos e poucos caracteres, quem se detém para conferir se “mas” tem “i” ou não parece um sobrevivente de outra era.

Não que as pessoas não saibam português. Sabem, sim (ou, pelo menos, acreditam saber). Cresceram ouvindo que o importante é se comunicar, como se isso fosse apenas jogar palavras ao ar e esperar que elas façam sentido sozinhas. O problema é que, às vezes, não fazem. A vírgula fora do lugar muda o sentido, o “mau” e o “mal” confundem, o “por que” vira um pesadelo de quatro variações... E o resultado é um texto que soa como aquele amigo que fala muito, mas diz nada.

Há quem culpe a escola, o professor, o celular, o corretor automático, a pressa, a vida moderna. E há também quem defenda que escrever corretamente é frescura. Mas quem já não se viu, em meio a um texto mal pontuado, tentando entender o que o outro quis dizer? Eu, por exemplo, sim (e por muitas vezes). Escrever bem não é exibicionismo: é generosidade. É facilitar a vida do leitor, é dizer algo assim: “Eu me importo em ser claro para você”.

A verdade é que o português, com todas as suas regras e exceções, com frequência, vira um drama de palavras, logo, exige muita atenção. Ele pede cuidado(s). E, no fundo, é isto o que falta: tempo e vontade de cuidar da língua, de tratá-la não como um peso, mas como uma companhia que, quanto mais conhecida, mais familiar se torna.

Porque escrever bem não é um luxo; é um gesto de respeito com o outro, com a própria ideia e (por que não?) com o idioma que insiste em sobreviver, mesmo entre abreviações, emojis, “seje” e “menas” de todos os dias...

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

CRÔNICA | A importância (não) dada ao Conselho Tutelar

O telefone do plantão toca no Conselho Tutelar. Uma das conselheiras atende, e é mais um pedido de ajuda, mais uma denúncia, mais uma família em conflito. Do outro lado da linha, quase sempre, há silêncio misturado com medo. Do lado de cá, há conselheiras com pastas cheias de casos, prazos correndo, visitas marcadas e uma sensação constante de estar apagando incêndios com baldes furados.

No entanto, quando alguém comenta sobre o Conselho Tutelar na rua, no ônibus ou na fila do supermercado, a frase costuma vir carregada de preconceito: “Ah, as conselheiras não fazem nada. Só aparecem para tirar criança de casa.” Como se o Conselho fosse um vilão de novela, entrando em cena apenas para separar mães e filhos, para “atrapalhar” a vida das famílias. Poucos lembram que ele existe não para destruir lares, mas para tentar reconstruí-los, quando já estão caindo aos pedaços.

Desde que passei a acompanhar o trabalho do Conselho Tutelar, devido a meu vínculo com a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Social de Santo Antônio da Partulha/RS, percebi que a verdade é que o Conselho Tutelar é chamado onde a infância foi esquecida, onde a criança vai dormir sem jantar, onde o grito virou rotina, onde a violência, a negligência ou a indiferença já moram há muito tempo. Mas essa parte não aparece na opinião popular. É mais fácil achar que o Conselho “não serve para nada”, do que admitir que vivemos em uma sociedade que ainda falha em proteger seus menores.

Talvez, falte à população enxergar que as conselheiras — tantas vezes julgadas como burocratas acomodadas — são, na prática, pontes frágeis entre a dor e a justiça. Eles não têm superpoderes, não carregam varinhas mágicas, não podem prometer finais felizes. porém podem ouvir, registrar, encaminhar e insistir. E isso, em um país que, tantas vezes, faz de conta que não vê as feridas da infância, já é um ato de resistência.

É irônico então: cobramos que o Conselho faça milagres, mas não lhe damos estrutura, respeito ou sequer o benefício da dúvida. É uma importância não dada a ele.

No fim das contas, pode ser que a maior injustiça com o Conselho Tutelar seja esta: não percebermos que, quando ele é chamado, é porque já falhamos como comunidade. E, ainda assim, preferimos acusá-lo de omissão a reconhecer a nossa.