O espelho da ótica sempre foi um lugar ingrato. Ele não perdoa olheiras, destaca cada ruga e, para piorar, devolve a imagem daquele objeto novo, estranho, sobre o nariz: os óculos de grau. A primeira vez que alguém se vê assim, com a armação escolhida — ou resignadamente aceita — é como um pequeno rito de passagem, desses que não se encontram em manual nenhum da vida adulta.
Até então, a gente se acostuma a acreditar que enxerga tudo. O letreiro distante, a bula impressa em letras microscópicas, o preço no cardápio — tudo parecia estar ao alcance dos olhos. Até que um dia a vista começa a brincar de esconde-esconde. As letras escapam, os contornos se embaralham, e surge aquela sensação incômoda de que o mundo continua nítido, só que não mais para você.
É nessa hora que a ficha cai: não são apenas os olhos que mudaram, mas o tempo que avançou sem pedir licença. O primeiro óculos não é apenas um acessório, é uma confissão silenciosa, é a lente da idade. Ele anuncia que já não se é tão jovem quanto se pensava — e, paradoxalmente, abre também uma nova nitidez: a de enxergar a própria idade chegando.
Mas há algo de curioso neste instante. Depois da resistência inicial, vem a descoberta: a vida recupera contornos. As letras voltam a se alinhar, os rostos ganham definição, as cores parecem agradecer. É como se o tempo dissesse: “Sim, estou passando, mas ainda lhee dou a chance de olhar o mundo com clareza.”
Em 19 de setembro, obriguei-me a consultar um oftalmologista. Em 23, tive a difícil, curiosa e resignante tarefa de escolher minha primeira armação. No fim, percebi que escolher óculos é como aceitar um pacto: envelhecer traz suas renúncias, mas também oferece novas formas de ver. E, quem diria, às vezes até com mais beleza.
— Mas, Márnei, quantos anos você tem?
— Vinte e cinco...
Nenhum comentário:
Postar um comentário